Há poucos dias minha atenção se concentrou quando eu ouvi alguém citar a frase acima. Parei para pensar e meditar um pouco sobre isso e não é que é uma grande verdade. Nossa boca está, de fato, harmonizada com nosso coração. Ela só fala aquilo que, num determinado momento de nossa vida, enche nosso coração. É verdade, e como isso é verdade...Nossos sentimentos, oriundos de nosso coração se manifestam através de palavras, pronunciadas por nossa boca para que assim haja a possibilidade de expressarmos esses mesmos sentimentos.
Quando nosso coração se inunda com o doce sentimento do amor, as palavras que saem de nossa boca são também doces, suaves, leves, transmitindo para as pessoas que eventualmente nos ouvem naquele momento, uma vibração positiva que é transportada pela energia, também positiva, que vinda do fundo de nosso alegre coração, transborda para todos aqueles que estão à nossa volta.
Se amamos alguém em especial, tudo o que queremos é falar dessa pessoa para todos os demais, todo o tempo, em todos os momentos. Não cansamos de dizer, principalmente a essa pessoa, o quanto a amamos e como isso nos faz bem levando paz, alegria e felicidade à nossa alma.
Com orgulho falamos do nosso filho querido, das coisas que ele faz ou fez, seja ele uma criança ou um adulto, não importa, é nosso coração cheio de orgulho por ele que está falando através das palavras que saem de nossa boca. É a expressão de um sentimento profundo que se manifesta através de palavras para que todos saibam.
Com ternura nos lembramos e falamos de nossos pais, parentes e amigos que já partiram para o Oriente Eterno. É a saudade, oriunda do coração mais uma vez sendo expressa por nossas palavras às vezes até acompanhadas de uma lágrima.
Com gratidão mencionamos nosso amigo, ou nosso irmão, que nos ajudou e que nos deu provas de uma verdadeira e sincera amizade. Como isso é gratificante, nosso coração sensibilizado faz questão de contar isso a todos. A amizade é também uma forma de amor.
E nós maçons, que apregoamos a Fraternidade, um verdadeiro sentimento de irmandade, mais uma forma de amor que nos faz irmãos de verdade. Durante nossa iniciação como aprendizes, no meio de toda aquela emoção que vai, aos poucos, substituindo o temor, o medo do desconhecido, em nossos corações por algo mais profundo, mais consistente, quando ouvimos: "Confia no teu guia". Alí, um novo caminho se abre em nossas vidas, o qual será trilhado e compartilhado por muitos e muitos amigos que, fraternalmente, comungam dos mesmos ideais que nós e que, a partir daquele momento transformam-se fraternalmente em nossos irmãos. O coração se rejubila e através de palavras se manifesta: Graças ao G:.A:.D:.U:. eu sou maçom.
Mas, e quando nosso coração está carregado de mágoas ou de ódios ? O que sairá de nossas bocas ? Sem dúvida alguma, só sairão palavras ferinas, carregadas dessas mágoas e desses ódios. Uma energia negativa que, oriunda de um coração machucado, magoado, decepcionado, sairá de uma boca carregada, envenenada, na forma de palavras sibilantes, que afetarão da mesma forma pesada e negativa, todos aqueles que estiverem em volta. Como serpentes que dão um bote mortal, essas palavras machucam, entristecem e também magoam as pessoas que as ouvem, tornando todo o ambiente ao redor carregado de uma atmosfera pesada, quase irrespirável provocando nos ouvintes uma necessidade de sair dali e procurar algo mais leve para ouvir e, claro para respirar.
Outros sentimentos podem também invadir nosso coração: dor, paz, compaixão, angústia, etc. Nossas palavras, sem dúvida, sempre acompanharão esses sentimentos. Às vezes confortando, às vezes alegrando, às vezes punindo, às vezes orientando mas sempre de forma harmonizada com o sentimento que naquele determinado momento ocupa nosso coração. Entretanto, é importante frizar, que é sempre aconselhável que tenhamos equilíbrio, que tenhamos bom senso. Nos momentos de amor, falamos, nos momentos de ódio, calamos. Mesmo porque, não podemos nos esquecer que sempre, em qualquer circunstância ou situação, o maior alvo de nossas palavras será sempre aquele que as estiver proferindo. Em outras palavras, nós mesmos. Isto quer dizer que nós nos rejubilaremos em momentos de felicidade e amor mas, ao contrário, seremos prejudicados e cobrados como responsáveis por tudo o que de negativo nossa boca proferir. Plante amor e colherá de seus frutos. Semeie o ódio e, sem dúvida, irás colher as tempestades que esse ódio fará desencadear, com toda a violência e tristeza que virá agregada a ele. Para bom entendedor meia palavra basta...
O amor sincero desencadeia uma série de emoções positivas como a amizade, a fraternidade, a caridade, a gratidão, a paz interior, a bondade, a piedade, o respeito mútuo, provoca a nossa aproximação ao nosso Mestre Jesus e seus ensinamentos, quaisquer que forem os caminhos que levem a Ele, ao Nosso Pai, Provoca a união das pessoas, nosso verdadeiro amor pelo próximo, desinteressado das coisas materiais, nosso amor pelos animais, pelas plantas, pela natureza. E uma vez que estejamos harmonizados no amor, nossa boca apenas proferirá palavras de carinho, de consolação e cantará hinos em louvor a Deus Nosso Pai.
Quando assim acontecer, não haverá mais lugar para a violência, que hoje perdeu o controle e banalizou-se totalmente porque, apesar do homem violento também ter Deus no âmago de seu coração, ele perdeu o sentimento do amor e, perdendo o amor, afastou-se totalmente do caminho do G:.A:.D:.U:., plantando sementes cuja colheita será por demais dolorosa e penosa.
Então entendamos que, somente através do amor em nossos corações é que poderemos finalmente nos harmonizar com a essência mais pura do amor eterno que é o G:. A:. D:. U:.
SÓMENTE NO AMOR CHEGAREMOS AO PAI
21 de Outubro de 1999 da E:.V:.
Ir:. Wilson S. Amabile
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quinta-feira, 11 de setembro de 2008
A MAÇONARIA
A MAÇONARIA
Matéria de Fernando Pessoa intitulada "A Maçonaria", publicada no Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
Estreou-se a Assembléia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a apresentação , por um deputado, de projeto de lei sobre "associações secretas". De tal ordem é o projeto, tanto em sua natureza com seu conteúdo, que não há que felicitar o atual Parlamento por lhe ter sido dada estréia. Antes há que dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agouro!
Apresentou o projeto o Sr. José Cabral, que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se integra, em natureza, como em conteúdo, nas melhores tradições dos Inquisitores. O projeto, que todos terão lido nos jornais, estabelece várias e fortes sanções (com exceção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o seu autor chama "associações secretas", sejam quais forem os seus fins e organização.
Dada a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se entende um agrupamento mais ou menos permanente de homens ligados por fim comum, e que por "secreto" se entende o que pelo menos parcialmente, se não o faz à vista do público, ou, feito, não se torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao Sr. José Cabral uma associação secreta - o Conselho de Ministros. De resto , tudo quanto sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secretamente. Se não reúnem em público os conselhos de ministros, também o não fazem as direções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos, ou os sinistros comunistas que formam os conselhos de administração das companhias comerciais e industriais.
Embora uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia frasear pouco nacionalista do Sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como pelo encômios com que o projeto foi afagado pela imprensa pseudocristã, que as "associações secretas" que ele verdadeiramente visa, são aquelas que envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o segredo especial a esta inerente.
Ora no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de Portugal, desaparecida a Carbonária - formada para fins transitórios, que se realizaram - , não existem , suponho, à parte uma outra possível Loja martinista ou semelhante mais do que duas associações secretas "dessa espécie". Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organização que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus, exatamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia.
Dos chamados jesuítas não tratarei , e por três motivos dos quais calarei o primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que eles corram risco de, aprovado que fosse o projeto, lhes serem aplicadas as suas sanções; e que não creio, por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha pretendido que tal aplicação se fizesse. Presumo pois que o projeto de lei do urgente deputado se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçônica. Como tal o examinarei.
Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos antimaçons, o autor deste projeto é totalmente desconhecedor do assunto Maçonaria. O que sabe dele é até porventura, pior que nada, pois naturalmente, terá nutrido o seu antimaçonismo da leitura da imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas. Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente com os livros de Findel, Kloss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio na leitura atenta da Ars Quatuor Coronatorum ou das suas publicações da Grande Loja de Iowa. Duvido , até, que o Sr. José Cabral tenha grande conhecimento da literatura antimaçônica - Barruel ou Robison, ou Eckert - tão admirável, aliás, do ponto de vista humorísticos. Nem terá tido noção, sequer de ouvido o artigo célebre do Padre Hermann Gruber na Catholic Encyclopoedia, artigo citado com elogio em livros maçônicos, e em que o doutor jesuíta por pouco não defende a Maçonaria.
Ora se o Sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins e organização da Ordem Maçônica, suponho que em igual condição estejem muitos dos outros membros de Assembléia Nacional, com diferença de que não se propuseram legislar sobre matéria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado apresentante, nem os seus colegas de assembléia, estarão, talvez em estado de medir claramente as conseqüências nacionais internas e sobretudo externas, que adviram da aprovação do projeto. Como conheço o assunto suficientemente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas conseqüências , vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao Sr. José Cabral e à Assembléia Legislativa de que é ornamento.
Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante. Não sou porém antimaçon, pois o que sei do assunto que me leva a ter uma idéia absolutamente favorável da Ordem Maçônica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria - parte que nada tem de político ou social - , fui necessariamente levado a estudar também esse assunto - assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e devidamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.
Se falo de mim, e deste modo, é para que o Sr. José Cabral e os colegas legisladores, saibam perfeitamente quem lhes está falando, e que o que vão ler, se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que o que vou dizer exija profundos conhecimentos maçônicos : é matéria puramente de superfície, da vida externa de Ordem.
Exige porém conhecimentos, e não ignorâncias, fantasias ou mentiras.
Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o Sr. José Cabral supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou, plena propriedade, uma Ordem iniciática. O Sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença . Pois o mal é esse - não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe em todo o caso, uma espécie de meia luz, qualquer coisa como a "treva visível" de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe o que é essa diferença por o que em linguagem maçônica se chama "termos de substituição".
A Ordem Maçônica é secreta por uma razão indireta e derivada - a mesma razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em que o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento - toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império - precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são blindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez legítima, daquela maçonaria remota.
Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro diretamente no que verdadeiramente interessa - as conseqüências que adviriam, para o país, da aprovação do projeto de lei do Sr. José Cabral. Tratarei primeiro das conseqüências internas.
A primeira conseqüência seria esta - coisa nenhuma. Se o Sr. José Cabral cuida que ele, ou a Assembléia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.
De resto, têm os Srs. deputados a prova prática em que o tem sucedido noutros países, onde se tem pretendido suprimir as Obediências maçônicas. Pondo de parte a Rússia - onde nem eu nem os Srs. deputados sabem o que verdadeiramente se passa, e onde, aliás, quase não havia Maçonaria - poderemos considerar os casos da Itália, da Espanha e da Alemanha.
Mussolini procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente da Itália mais ou menos nos termos pagãos do projeto do Sr. José Cabral. Não sei se perseguiu muita gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde. Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera: se tem em que esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vazadas dum metal que proceda da Alquimia.
Primo da Rivera, procedeu mais brandamente, conforme a sua índole fidalga, contra a Maçonaria Espanhola. Também sei ao certo qual foi o resultado - o grande desenvolvimento, numérico como político, da Maçonaria em Espanha. Não sei se alguns fenômenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia, teriam qualquer relação com esse fato.
Hitler, depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras Grandes Lojas - as que o não tinham apoiado nem eram cristãs - e, por intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas disseram que sim - aos Goerings diz-se sempre que sim - e continuaram a existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começaram a surgir cisões e outras dificuldades adentro do partido nazi. A história, como o Sr. José Cabral deve saber, tem muitas destas coincidências.
Como tenho estado a apresentar razões e fatos até certo ponto desanimadores para o Sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo, positivo, que adviria da aprovação do seu projeto. Resultaria dele - alegre-se o dominicano! - um grande número de perseguições a oficiais do exército e da armada ( exceto em Cascais ) e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem. Resultaria, portanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível - e isto é grave - que se encontrassem pessoas devotas de Santa Teresinha do Menino Jesus, personagem que ocupa, na atual mitologia portuguesa, um lugar um pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo , no estilo inesperado do roulement que não rola, o problema do desemprego - para aqueles atuais desempregados, bem entendido, que têm por Grão-Mestre Adjunto o Sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho.
Seriam essas as conseqüências internas da aprovação do projeto: dois zeros - um para o efeito antimaçônico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam essas as conseqüências internas. Vou tratar agora das conseqüências externas, isto é, das conseqüências que adviriam da aprovação do projeto para a vida e o crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado, não só é possível, mas quase certo, creio que não ocorreu ao Sr. José Cabral. Presto homenagem - e a sério - ao seu patriotismo, embora lamente que seja um patriotismo tão analfabeto.
Existem hoje em atividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas Obediências independentes do Império Britânico. Assim, cinco-sextos dos maçons hoje em atividade são maçons de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida, acha-se repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França.
As Obediências maçônicas são potências autônomas e independentes, pois não há governo central da Maçonaria, que é por isso menos "internacional" que a Igreja Romana.
Há Obediências maçônicas que poucas relações têm entre si: há até Obediências que estão suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não reatou, com o Grande Oriente de França. A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergências - cuja natureza não sei mas presumo - quanto à maneira de desenvolver a Maçonaria na China.
Assim a Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes - polí-ticos, sociais e até rituais - de país para país, e até, dentro do mesmo país, de Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três Obediências independentes - o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França ( prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33 ) e a loja Regular, Nacional e Independente para a França e suas Colônias. O Grande Oriente é acentuadamente, radical e anti-religioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anticlerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande Oriente de França tem uma grande influência política, mas exceto através dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se preocupa com política, mas a sua influência social é enorme.
Conquanto, porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo dos Graus Simbólicos ( nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está, já para quem saiba ver ou sentir, a Maçonaria inteira ), é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por Obediências diferentes. Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos claras; quem tiver as chaves herméticas em qualquer forma de um ritual encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.
Resulta desta comunidade de espírito profundo, deste íntimo e se-creto laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, ( que ) uma Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhuma relações com outra, não vê todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os maçons da Grande Loja de Inglaterra não têm, como se disse, relações com os Grande Oriente de França. Quando, porém recentemente surgiu em França, a propósito dos casos Stavisk e Prince, uma campanha antimaçônica, de origem aliás ultra-suspeita, a vaga simpática, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos conservadores que atacavam o Governo Francês, desapareceram imediatamente. O Times, conservador mas acentuadamente maçônico, relatou as manifestações contra o Governo Francês com uma antipatia que roçou pela deturpação de fatos. E há muitos casos semelhantes, como o de escritor maçônico inglês, que em seus livros constantemente ataca o Grande Oriente de França, mudar completamente de atitude ao responder a uma escritora inglesa antimaçônica, que afinal dissera pouco mais ou menos que ele havia sempre dito.
Nisto tudo, que serviu de exemplo, trata-se de coisas de pouca monta, simples campanha de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e individuais da parte dos maçons que as tomaram.
Quando porém se trate de fatos maçonicamente graves, como seja a tentativa por um governo, de suprimir ou perseguir uma Obediência maçônica, já a ação dos maçons não é tão individual e isolada, nem se resume a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações, de origem, aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o Governo de Primo de Rivera e que se encontraram, e ainda encontram, os Governos da Itália e da Alemanha.
Esses, porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo modo podem contrabandear aquelas oposições. Vem mais a propósito citar o caso de um país que não é grande nem influente na política européia em geral. Refiro-me á Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo americano.
Aqui há anos, pouco depois da guerra, o Governo Húngaro decretou a supressão da Maçonaria no seu território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados Unidos. Estava o empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final de que não seria concedido se não restabelecessem "certas instituições legítimas". O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado a entrar em transações com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a reabertura das Lojas com a condição ( que parece do Sr. José Cabral ) de que nelas pudessem assistir profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre recusou. O Governo manteve portanto a "suspensão" das Lojas... e o empréstimo não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que não faz propriamente política nem mantém relações muito intensas com as Obediências européias, á exceção das britânicas. Tratava-se, porém, de uma grave injúria à Maçonaria, e o resultado foi o que se vê.
Não venha o Sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimos do estrangeiro . Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo, de colônias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outra coisas, incluindo o não incorrer na hostilidade ativa dos cinco mil e tal milhões de maçons que, por apolíticos, ainda nos não têm hostilizado.
Creio que disse o suficiente para que o Sr. José Cabral e os outros Srs. deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o alcance da aprovação deste projeto na vida e no crédito de Portugal. Antes de acabar, porém, quero dar-lhe uma pequena amostra da espécie de gente em cuja antipatia ativa incorreríamos.
Tomarei por exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela importância que para nós têm as nossas relações com aquele país, mas também porque qualquer ação dessa Grande Loja - a Loja-Mãe do Universo, com cerca de 450.000 maçons em atividade - arrasta consigo todos os maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes. Do resto da Maçonaria não é preciso falar.
São maçons, sob a obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei - o Príncipe de Gales, Grão-Mestre Provincial de Surrey, o Duque de York, Grão-Mestre Provincial de Middlesex, e o Duque de Kent, antigo Primeiro Grande Vigilante. É Maçom o genro do Rei, Conde de Harwood, Grão-Mestre Provincial de West Yorkshire.
São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo os da antiga linhagem. São maçons, em grande número, os prelados e sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto do mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja de Roma. Não prossigo, porque já basta... Lembro todavia que os três grandes jornais conservadores ingleses - o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph, são ao mesmo tempo maçônicos...
Acabei. Convém, porém não acabar ainda. Provei neste artigo que o projeto de lei do Sr. José Cabral, além do produto da mais completa ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro, inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um maléfico para o país na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que considerar, se a Maçonaria mereceu o mau conceito em que evidentemente a tem o Sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe raciocinar, pode alguém supor que me esquivei a esse ponto. Vou por isso tratar dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor.
A Maçonaria compõe-se de três elementos; o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano - isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage quanto a atitude social, diferentemente.
Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçônico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria - como aliás, qualquer instituição humana, secreta ou não - apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa.
Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só idéia - a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina maçônica" são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos eles tentando converter em doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçônico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.
O segundo erro dos antimaçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afetam a Maçonaria como afetam toda a gente. A sua ação social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência , onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias - as que provocaram a formação dessas Obediências distintas , pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue de aqui que nenhum ato político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.
Resulta de tudo isto que em todas as campanhas antimaçônicas - baseadas nesta dupla confusão de particular com o geral e do ocasional com o permanente - estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério - o de avaliar uma instituição pelos seus atos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais - que haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma definida de em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores ( provenientes de um uso profano do tempo ) ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente a Igreja inteira.
Sejamos, ao menos justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a critério, em contrapartida, os benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito - quando expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa - pelo maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellinton e Blucher eram ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados - a Entende Cordiale, obra do maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna - o Fausto, do maçom Goethe.
Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a antimaçonaria àqueles antimaçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.
Deixe isso tudo, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem porque será 13 de Fevereiro - o aniversário daquela lei de João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.
Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
FERNANDO PESSOA
Matéria de Fernando Pessoa intitulada "A Maçonaria", publicada no Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
Estreou-se a Assembléia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a apresentação , por um deputado, de projeto de lei sobre "associações secretas". De tal ordem é o projeto, tanto em sua natureza com seu conteúdo, que não há que felicitar o atual Parlamento por lhe ter sido dada estréia. Antes há que dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agouro!
Apresentou o projeto o Sr. José Cabral, que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se integra, em natureza, como em conteúdo, nas melhores tradições dos Inquisitores. O projeto, que todos terão lido nos jornais, estabelece várias e fortes sanções (com exceção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o seu autor chama "associações secretas", sejam quais forem os seus fins e organização.
Dada a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se entende um agrupamento mais ou menos permanente de homens ligados por fim comum, e que por "secreto" se entende o que pelo menos parcialmente, se não o faz à vista do público, ou, feito, não se torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao Sr. José Cabral uma associação secreta - o Conselho de Ministros. De resto , tudo quanto sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secretamente. Se não reúnem em público os conselhos de ministros, também o não fazem as direções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos, ou os sinistros comunistas que formam os conselhos de administração das companhias comerciais e industriais.
Embora uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia frasear pouco nacionalista do Sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como pelo encômios com que o projeto foi afagado pela imprensa pseudocristã, que as "associações secretas" que ele verdadeiramente visa, são aquelas que envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o segredo especial a esta inerente.
Ora no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de Portugal, desaparecida a Carbonária - formada para fins transitórios, que se realizaram - , não existem , suponho, à parte uma outra possível Loja martinista ou semelhante mais do que duas associações secretas "dessa espécie". Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organização que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus, exatamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia.
Dos chamados jesuítas não tratarei , e por três motivos dos quais calarei o primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que eles corram risco de, aprovado que fosse o projeto, lhes serem aplicadas as suas sanções; e que não creio, por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha pretendido que tal aplicação se fizesse. Presumo pois que o projeto de lei do urgente deputado se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçônica. Como tal o examinarei.
Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos antimaçons, o autor deste projeto é totalmente desconhecedor do assunto Maçonaria. O que sabe dele é até porventura, pior que nada, pois naturalmente, terá nutrido o seu antimaçonismo da leitura da imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas. Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente com os livros de Findel, Kloss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio na leitura atenta da Ars Quatuor Coronatorum ou das suas publicações da Grande Loja de Iowa. Duvido , até, que o Sr. José Cabral tenha grande conhecimento da literatura antimaçônica - Barruel ou Robison, ou Eckert - tão admirável, aliás, do ponto de vista humorísticos. Nem terá tido noção, sequer de ouvido o artigo célebre do Padre Hermann Gruber na Catholic Encyclopoedia, artigo citado com elogio em livros maçônicos, e em que o doutor jesuíta por pouco não defende a Maçonaria.
Ora se o Sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins e organização da Ordem Maçônica, suponho que em igual condição estejem muitos dos outros membros de Assembléia Nacional, com diferença de que não se propuseram legislar sobre matéria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado apresentante, nem os seus colegas de assembléia, estarão, talvez em estado de medir claramente as conseqüências nacionais internas e sobretudo externas, que adviram da aprovação do projeto. Como conheço o assunto suficientemente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas conseqüências , vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao Sr. José Cabral e à Assembléia Legislativa de que é ornamento.
Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante. Não sou porém antimaçon, pois o que sei do assunto que me leva a ter uma idéia absolutamente favorável da Ordem Maçônica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria - parte que nada tem de político ou social - , fui necessariamente levado a estudar também esse assunto - assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e devidamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.
Se falo de mim, e deste modo, é para que o Sr. José Cabral e os colegas legisladores, saibam perfeitamente quem lhes está falando, e que o que vão ler, se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que o que vou dizer exija profundos conhecimentos maçônicos : é matéria puramente de superfície, da vida externa de Ordem.
Exige porém conhecimentos, e não ignorâncias, fantasias ou mentiras.
Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o Sr. José Cabral supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou, plena propriedade, uma Ordem iniciática. O Sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença . Pois o mal é esse - não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe em todo o caso, uma espécie de meia luz, qualquer coisa como a "treva visível" de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe o que é essa diferença por o que em linguagem maçônica se chama "termos de substituição".
A Ordem Maçônica é secreta por uma razão indireta e derivada - a mesma razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em que o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento - toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império - precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são blindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez legítima, daquela maçonaria remota.
Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro diretamente no que verdadeiramente interessa - as conseqüências que adviriam, para o país, da aprovação do projeto de lei do Sr. José Cabral. Tratarei primeiro das conseqüências internas.
A primeira conseqüência seria esta - coisa nenhuma. Se o Sr. José Cabral cuida que ele, ou a Assembléia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.
De resto, têm os Srs. deputados a prova prática em que o tem sucedido noutros países, onde se tem pretendido suprimir as Obediências maçônicas. Pondo de parte a Rússia - onde nem eu nem os Srs. deputados sabem o que verdadeiramente se passa, e onde, aliás, quase não havia Maçonaria - poderemos considerar os casos da Itália, da Espanha e da Alemanha.
Mussolini procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente da Itália mais ou menos nos termos pagãos do projeto do Sr. José Cabral. Não sei se perseguiu muita gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde. Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera: se tem em que esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vazadas dum metal que proceda da Alquimia.
Primo da Rivera, procedeu mais brandamente, conforme a sua índole fidalga, contra a Maçonaria Espanhola. Também sei ao certo qual foi o resultado - o grande desenvolvimento, numérico como político, da Maçonaria em Espanha. Não sei se alguns fenômenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia, teriam qualquer relação com esse fato.
Hitler, depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras Grandes Lojas - as que o não tinham apoiado nem eram cristãs - e, por intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas disseram que sim - aos Goerings diz-se sempre que sim - e continuaram a existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começaram a surgir cisões e outras dificuldades adentro do partido nazi. A história, como o Sr. José Cabral deve saber, tem muitas destas coincidências.
Como tenho estado a apresentar razões e fatos até certo ponto desanimadores para o Sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo, positivo, que adviria da aprovação do seu projeto. Resultaria dele - alegre-se o dominicano! - um grande número de perseguições a oficiais do exército e da armada ( exceto em Cascais ) e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem. Resultaria, portanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível - e isto é grave - que se encontrassem pessoas devotas de Santa Teresinha do Menino Jesus, personagem que ocupa, na atual mitologia portuguesa, um lugar um pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo , no estilo inesperado do roulement que não rola, o problema do desemprego - para aqueles atuais desempregados, bem entendido, que têm por Grão-Mestre Adjunto o Sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho.
Seriam essas as conseqüências internas da aprovação do projeto: dois zeros - um para o efeito antimaçônico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam essas as conseqüências internas. Vou tratar agora das conseqüências externas, isto é, das conseqüências que adviriam da aprovação do projeto para a vida e o crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado, não só é possível, mas quase certo, creio que não ocorreu ao Sr. José Cabral. Presto homenagem - e a sério - ao seu patriotismo, embora lamente que seja um patriotismo tão analfabeto.
Existem hoje em atividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas Obediências independentes do Império Britânico. Assim, cinco-sextos dos maçons hoje em atividade são maçons de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida, acha-se repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França.
As Obediências maçônicas são potências autônomas e independentes, pois não há governo central da Maçonaria, que é por isso menos "internacional" que a Igreja Romana.
Há Obediências maçônicas que poucas relações têm entre si: há até Obediências que estão suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não reatou, com o Grande Oriente de França. A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergências - cuja natureza não sei mas presumo - quanto à maneira de desenvolver a Maçonaria na China.
Assim a Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes - polí-ticos, sociais e até rituais - de país para país, e até, dentro do mesmo país, de Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três Obediências independentes - o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França ( prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33 ) e a loja Regular, Nacional e Independente para a França e suas Colônias. O Grande Oriente é acentuadamente, radical e anti-religioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anticlerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande Oriente de França tem uma grande influência política, mas exceto através dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se preocupa com política, mas a sua influência social é enorme.
Conquanto, porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo dos Graus Simbólicos ( nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está, já para quem saiba ver ou sentir, a Maçonaria inteira ), é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por Obediências diferentes. Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos claras; quem tiver as chaves herméticas em qualquer forma de um ritual encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.
Resulta desta comunidade de espírito profundo, deste íntimo e se-creto laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, ( que ) uma Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhuma relações com outra, não vê todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os maçons da Grande Loja de Inglaterra não têm, como se disse, relações com os Grande Oriente de França. Quando, porém recentemente surgiu em França, a propósito dos casos Stavisk e Prince, uma campanha antimaçônica, de origem aliás ultra-suspeita, a vaga simpática, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos conservadores que atacavam o Governo Francês, desapareceram imediatamente. O Times, conservador mas acentuadamente maçônico, relatou as manifestações contra o Governo Francês com uma antipatia que roçou pela deturpação de fatos. E há muitos casos semelhantes, como o de escritor maçônico inglês, que em seus livros constantemente ataca o Grande Oriente de França, mudar completamente de atitude ao responder a uma escritora inglesa antimaçônica, que afinal dissera pouco mais ou menos que ele havia sempre dito.
Nisto tudo, que serviu de exemplo, trata-se de coisas de pouca monta, simples campanha de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e individuais da parte dos maçons que as tomaram.
Quando porém se trate de fatos maçonicamente graves, como seja a tentativa por um governo, de suprimir ou perseguir uma Obediência maçônica, já a ação dos maçons não é tão individual e isolada, nem se resume a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações, de origem, aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o Governo de Primo de Rivera e que se encontraram, e ainda encontram, os Governos da Itália e da Alemanha.
Esses, porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo modo podem contrabandear aquelas oposições. Vem mais a propósito citar o caso de um país que não é grande nem influente na política européia em geral. Refiro-me á Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo americano.
Aqui há anos, pouco depois da guerra, o Governo Húngaro decretou a supressão da Maçonaria no seu território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados Unidos. Estava o empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final de que não seria concedido se não restabelecessem "certas instituições legítimas". O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado a entrar em transações com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a reabertura das Lojas com a condição ( que parece do Sr. José Cabral ) de que nelas pudessem assistir profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre recusou. O Governo manteve portanto a "suspensão" das Lojas... e o empréstimo não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que não faz propriamente política nem mantém relações muito intensas com as Obediências européias, á exceção das britânicas. Tratava-se, porém, de uma grave injúria à Maçonaria, e o resultado foi o que se vê.
Não venha o Sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimos do estrangeiro . Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo, de colônias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outra coisas, incluindo o não incorrer na hostilidade ativa dos cinco mil e tal milhões de maçons que, por apolíticos, ainda nos não têm hostilizado.
Creio que disse o suficiente para que o Sr. José Cabral e os outros Srs. deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o alcance da aprovação deste projeto na vida e no crédito de Portugal. Antes de acabar, porém, quero dar-lhe uma pequena amostra da espécie de gente em cuja antipatia ativa incorreríamos.
Tomarei por exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela importância que para nós têm as nossas relações com aquele país, mas também porque qualquer ação dessa Grande Loja - a Loja-Mãe do Universo, com cerca de 450.000 maçons em atividade - arrasta consigo todos os maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes. Do resto da Maçonaria não é preciso falar.
São maçons, sob a obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei - o Príncipe de Gales, Grão-Mestre Provincial de Surrey, o Duque de York, Grão-Mestre Provincial de Middlesex, e o Duque de Kent, antigo Primeiro Grande Vigilante. É Maçom o genro do Rei, Conde de Harwood, Grão-Mestre Provincial de West Yorkshire.
São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo os da antiga linhagem. São maçons, em grande número, os prelados e sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto do mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja de Roma. Não prossigo, porque já basta... Lembro todavia que os três grandes jornais conservadores ingleses - o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph, são ao mesmo tempo maçônicos...
Acabei. Convém, porém não acabar ainda. Provei neste artigo que o projeto de lei do Sr. José Cabral, além do produto da mais completa ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro, inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um maléfico para o país na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que considerar, se a Maçonaria mereceu o mau conceito em que evidentemente a tem o Sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe raciocinar, pode alguém supor que me esquivei a esse ponto. Vou por isso tratar dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor.
A Maçonaria compõe-se de três elementos; o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano - isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage quanto a atitude social, diferentemente.
Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçônico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria - como aliás, qualquer instituição humana, secreta ou não - apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa.
Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só idéia - a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina maçônica" são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos eles tentando converter em doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçônico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.
O segundo erro dos antimaçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afetam a Maçonaria como afetam toda a gente. A sua ação social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência , onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias - as que provocaram a formação dessas Obediências distintas , pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue de aqui que nenhum ato político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.
Resulta de tudo isto que em todas as campanhas antimaçônicas - baseadas nesta dupla confusão de particular com o geral e do ocasional com o permanente - estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério - o de avaliar uma instituição pelos seus atos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais - que haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma definida de em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores ( provenientes de um uso profano do tempo ) ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente a Igreja inteira.
Sejamos, ao menos justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a critério, em contrapartida, os benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito - quando expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa - pelo maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellinton e Blucher eram ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados - a Entende Cordiale, obra do maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna - o Fausto, do maçom Goethe.
Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a antimaçonaria àqueles antimaçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.
Deixe isso tudo, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem porque será 13 de Fevereiro - o aniversário daquela lei de João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.
Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
FERNANDO PESSOA
Matéria de Fernando Pessoa intitulada "A Maçonaria", publicada no Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
Estreou-se a Assembléia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a apresentação , por um deputado, de projeto de lei sobre "associações secretas". De tal ordem é o projeto, tanto em sua natureza com seu conteúdo, que não há que felicitar o atual Parlamento por lhe ter sido dada estréia. Antes há que dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agouro!
Apresentou o projeto o Sr. José Cabral, que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se integra, em natureza, como em conteúdo, nas melhores tradições dos Inquisitores. O projeto, que todos terão lido nos jornais, estabelece várias e fortes sanções (com exceção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o seu autor chama "associações secretas", sejam quais forem os seus fins e organização.
Dada a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se entende um agrupamento mais ou menos permanente de homens ligados por fim comum, e que por "secreto" se entende o que pelo menos parcialmente, se não o faz à vista do público, ou, feito, não se torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao Sr. José Cabral uma associação secreta - o Conselho de Ministros. De resto , tudo quanto sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secretamente. Se não reúnem em público os conselhos de ministros, também o não fazem as direções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos, ou os sinistros comunistas que formam os conselhos de administração das companhias comerciais e industriais.
Embora uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia frasear pouco nacionalista do Sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como pelo encômios com que o projeto foi afagado pela imprensa pseudocristã, que as "associações secretas" que ele verdadeiramente visa, são aquelas que envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o segredo especial a esta inerente.
Ora no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de Portugal, desaparecida a Carbonária - formada para fins transitórios, que se realizaram - , não existem , suponho, à parte uma outra possível Loja martinista ou semelhante mais do que duas associações secretas "dessa espécie". Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organização que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus, exatamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia.
Dos chamados jesuítas não tratarei , e por três motivos dos quais calarei o primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que eles corram risco de, aprovado que fosse o projeto, lhes serem aplicadas as suas sanções; e que não creio, por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha pretendido que tal aplicação se fizesse. Presumo pois que o projeto de lei do urgente deputado se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçônica. Como tal o examinarei.
Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos antimaçons, o autor deste projeto é totalmente desconhecedor do assunto Maçonaria. O que sabe dele é até porventura, pior que nada, pois naturalmente, terá nutrido o seu antimaçonismo da leitura da imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas. Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente com os livros de Findel, Kloss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio na leitura atenta da Ars Quatuor Coronatorum ou das suas publicações da Grande Loja de Iowa. Duvido , até, que o Sr. José Cabral tenha grande conhecimento da literatura antimaçônica - Barruel ou Robison, ou Eckert - tão admirável, aliás, do ponto de vista humorísticos. Nem terá tido noção, sequer de ouvido o artigo célebre do Padre Hermann Gruber na Catholic Encyclopoedia, artigo citado com elogio em livros maçônicos, e em que o doutor jesuíta por pouco não defende a Maçonaria.
Ora se o Sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins e organização da Ordem Maçônica, suponho que em igual condição estejem muitos dos outros membros de Assembléia Nacional, com diferença de que não se propuseram legislar sobre matéria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado apresentante, nem os seus colegas de assembléia, estarão, talvez em estado de medir claramente as conseqüências nacionais internas e sobretudo externas, que adviram da aprovação do projeto. Como conheço o assunto suficientemente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas conseqüências , vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao Sr. José Cabral e à Assembléia Legislativa de que é ornamento.
Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante. Não sou porém antimaçon, pois o que sei do assunto que me leva a ter uma idéia absolutamente favorável da Ordem Maçônica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria - parte que nada tem de político ou social - , fui necessariamente levado a estudar também esse assunto - assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e devidamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.
Se falo de mim, e deste modo, é para que o Sr. José Cabral e os colegas legisladores, saibam perfeitamente quem lhes está falando, e que o que vão ler, se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que o que vou dizer exija profundos conhecimentos maçônicos : é matéria puramente de superfície, da vida externa de Ordem.
Exige porém conhecimentos, e não ignorâncias, fantasias ou mentiras.
Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o Sr. José Cabral supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou, plena propriedade, uma Ordem iniciática. O Sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença . Pois o mal é esse - não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe em todo o caso, uma espécie de meia luz, qualquer coisa como a "treva visível" de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe o que é essa diferença por o que em linguagem maçônica se chama "termos de substituição".
A Ordem Maçônica é secreta por uma razão indireta e derivada - a mesma razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em que o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento - toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império - precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são blindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez legítima, daquela maçonaria remota.
Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro diretamente no que verdadeiramente interessa - as conseqüências que adviriam, para o país, da aprovação do projeto de lei do Sr. José Cabral. Tratarei primeiro das conseqüências internas.
A primeira conseqüência seria esta - coisa nenhuma. Se o Sr. José Cabral cuida que ele, ou a Assembléia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.
De resto, têm os Srs. deputados a prova prática em que o tem sucedido noutros países, onde se tem pretendido suprimir as Obediências maçônicas. Pondo de parte a Rússia - onde nem eu nem os Srs. deputados sabem o que verdadeiramente se passa, e onde, aliás, quase não havia Maçonaria - poderemos considerar os casos da Itália, da Espanha e da Alemanha.
Mussolini procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente da Itália mais ou menos nos termos pagãos do projeto do Sr. José Cabral. Não sei se perseguiu muita gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde. Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera: se tem em que esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vazadas dum metal que proceda da Alquimia.
Primo da Rivera, procedeu mais brandamente, conforme a sua índole fidalga, contra a Maçonaria Espanhola. Também sei ao certo qual foi o resultado - o grande desenvolvimento, numérico como político, da Maçonaria em Espanha. Não sei se alguns fenômenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia, teriam qualquer relação com esse fato.
Hitler, depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras Grandes Lojas - as que o não tinham apoiado nem eram cristãs - e, por intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas disseram que sim - aos Goerings diz-se sempre que sim - e continuaram a existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começaram a surgir cisões e outras dificuldades adentro do partido nazi. A história, como o Sr. José Cabral deve saber, tem muitas destas coincidências.
Como tenho estado a apresentar razões e fatos até certo ponto desanimadores para o Sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo, positivo, que adviria da aprovação do seu projeto. Resultaria dele - alegre-se o dominicano! - um grande número de perseguições a oficiais do exército e da armada ( exceto em Cascais ) e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem. Resultaria, portanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível - e isto é grave - que se encontrassem pessoas devotas de Santa Teresinha do Menino Jesus, personagem que ocupa, na atual mitologia portuguesa, um lugar um pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo , no estilo inesperado do roulement que não rola, o problema do desemprego - para aqueles atuais desempregados, bem entendido, que têm por Grão-Mestre Adjunto o Sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho.
Seriam essas as conseqüências internas da aprovação do projeto: dois zeros - um para o efeito antimaçônico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam essas as conseqüências internas. Vou tratar agora das conseqüências externas, isto é, das conseqüências que adviriam da aprovação do projeto para a vida e o crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado, não só é possível, mas quase certo, creio que não ocorreu ao Sr. José Cabral. Presto homenagem - e a sério - ao seu patriotismo, embora lamente que seja um patriotismo tão analfabeto.
Existem hoje em atividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas Obediências independentes do Império Britânico. Assim, cinco-sextos dos maçons hoje em atividade são maçons de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida, acha-se repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França.
As Obediências maçônicas são potências autônomas e independentes, pois não há governo central da Maçonaria, que é por isso menos "internacional" que a Igreja Romana.
Há Obediências maçônicas que poucas relações têm entre si: há até Obediências que estão suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não reatou, com o Grande Oriente de França. A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergências - cuja natureza não sei mas presumo - quanto à maneira de desenvolver a Maçonaria na China.
Assim a Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes - polí-ticos, sociais e até rituais - de país para país, e até, dentro do mesmo país, de Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três Obediências independentes - o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França ( prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33 ) e a loja Regular, Nacional e Independente para a França e suas Colônias. O Grande Oriente é acentuadamente, radical e anti-religioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anticlerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande Oriente de França tem uma grande influência política, mas exceto através dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se preocupa com política, mas a sua influência social é enorme.
Conquanto, porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo dos Graus Simbólicos ( nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está, já para quem saiba ver ou sentir, a Maçonaria inteira ), é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por Obediências diferentes. Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos claras; quem tiver as chaves herméticas em qualquer forma de um ritual encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.
Resulta desta comunidade de espírito profundo, deste íntimo e se-creto laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, ( que ) uma Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhuma relações com outra, não vê todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os maçons da Grande Loja de Inglaterra não têm, como se disse, relações com os Grande Oriente de França. Quando, porém recentemente surgiu em França, a propósito dos casos Stavisk e Prince, uma campanha antimaçônica, de origem aliás ultra-suspeita, a vaga simpática, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos conservadores que atacavam o Governo Francês, desapareceram imediatamente. O Times, conservador mas acentuadamente maçônico, relatou as manifestações contra o Governo Francês com uma antipatia que roçou pela deturpação de fatos. E há muitos casos semelhantes, como o de escritor maçônico inglês, que em seus livros constantemente ataca o Grande Oriente de França, mudar completamente de atitude ao responder a uma escritora inglesa antimaçônica, que afinal dissera pouco mais ou menos que ele havia sempre dito.
Nisto tudo, que serviu de exemplo, trata-se de coisas de pouca monta, simples campanha de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e individuais da parte dos maçons que as tomaram.
Quando porém se trate de fatos maçonicamente graves, como seja a tentativa por um governo, de suprimir ou perseguir uma Obediência maçônica, já a ação dos maçons não é tão individual e isolada, nem se resume a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações, de origem, aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o Governo de Primo de Rivera e que se encontraram, e ainda encontram, os Governos da Itália e da Alemanha.
Esses, porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo modo podem contrabandear aquelas oposições. Vem mais a propósito citar o caso de um país que não é grande nem influente na política européia em geral. Refiro-me á Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo americano.
Aqui há anos, pouco depois da guerra, o Governo Húngaro decretou a supressão da Maçonaria no seu território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados Unidos. Estava o empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final de que não seria concedido se não restabelecessem "certas instituições legítimas". O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado a entrar em transações com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a reabertura das Lojas com a condição ( que parece do Sr. José Cabral ) de que nelas pudessem assistir profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre recusou. O Governo manteve portanto a "suspensão" das Lojas... e o empréstimo não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que não faz propriamente política nem mantém relações muito intensas com as Obediências européias, á exceção das britânicas. Tratava-se, porém, de uma grave injúria à Maçonaria, e o resultado foi o que se vê.
Não venha o Sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimos do estrangeiro . Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo, de colônias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outra coisas, incluindo o não incorrer na hostilidade ativa dos cinco mil e tal milhões de maçons que, por apolíticos, ainda nos não têm hostilizado.
Creio que disse o suficiente para que o Sr. José Cabral e os outros Srs. deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o alcance da aprovação deste projeto na vida e no crédito de Portugal. Antes de acabar, porém, quero dar-lhe uma pequena amostra da espécie de gente em cuja antipatia ativa incorreríamos.
Tomarei por exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela importância que para nós têm as nossas relações com aquele país, mas também porque qualquer ação dessa Grande Loja - a Loja-Mãe do Universo, com cerca de 450.000 maçons em atividade - arrasta consigo todos os maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes. Do resto da Maçonaria não é preciso falar.
São maçons, sob a obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei - o Príncipe de Gales, Grão-Mestre Provincial de Surrey, o Duque de York, Grão-Mestre Provincial de Middlesex, e o Duque de Kent, antigo Primeiro Grande Vigilante. É Maçom o genro do Rei, Conde de Harwood, Grão-Mestre Provincial de West Yorkshire.
São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo os da antiga linhagem. São maçons, em grande número, os prelados e sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto do mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja de Roma. Não prossigo, porque já basta... Lembro todavia que os três grandes jornais conservadores ingleses - o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph, são ao mesmo tempo maçônicos...
Acabei. Convém, porém não acabar ainda. Provei neste artigo que o projeto de lei do Sr. José Cabral, além do produto da mais completa ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro, inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um maléfico para o país na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que considerar, se a Maçonaria mereceu o mau conceito em que evidentemente a tem o Sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe raciocinar, pode alguém supor que me esquivei a esse ponto. Vou por isso tratar dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor.
A Maçonaria compõe-se de três elementos; o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano - isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage quanto a atitude social, diferentemente.
Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçônico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria - como aliás, qualquer instituição humana, secreta ou não - apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa.
Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só idéia - a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina maçônica" são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos eles tentando converter em doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçônico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.
O segundo erro dos antimaçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afetam a Maçonaria como afetam toda a gente. A sua ação social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência , onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias - as que provocaram a formação dessas Obediências distintas , pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue de aqui que nenhum ato político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.
Resulta de tudo isto que em todas as campanhas antimaçônicas - baseadas nesta dupla confusão de particular com o geral e do ocasional com o permanente - estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério - o de avaliar uma instituição pelos seus atos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais - que haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma definida de em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores ( provenientes de um uso profano do tempo ) ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente a Igreja inteira.
Sejamos, ao menos justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a critério, em contrapartida, os benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito - quando expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa - pelo maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellinton e Blucher eram ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados - a Entende Cordiale, obra do maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna - o Fausto, do maçom Goethe.
Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a antimaçonaria àqueles antimaçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.
Deixe isso tudo, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem porque será 13 de Fevereiro - o aniversário daquela lei de João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.
Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
FERNANDO PESSOA
Matéria de Fernando Pessoa intitulada "A Maçonaria", publicada no Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
Estreou-se a Assembléia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a apresentação , por um deputado, de projeto de lei sobre "associações secretas". De tal ordem é o projeto, tanto em sua natureza com seu conteúdo, que não há que felicitar o atual Parlamento por lhe ter sido dada estréia. Antes há que dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agouro!
Apresentou o projeto o Sr. José Cabral, que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se integra, em natureza, como em conteúdo, nas melhores tradições dos Inquisitores. O projeto, que todos terão lido nos jornais, estabelece várias e fortes sanções (com exceção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o seu autor chama "associações secretas", sejam quais forem os seus fins e organização.
Dada a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se entende um agrupamento mais ou menos permanente de homens ligados por fim comum, e que por "secreto" se entende o que pelo menos parcialmente, se não o faz à vista do público, ou, feito, não se torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao Sr. José Cabral uma associação secreta - o Conselho de Ministros. De resto , tudo quanto sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secretamente. Se não reúnem em público os conselhos de ministros, também o não fazem as direções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos, ou os sinistros comunistas que formam os conselhos de administração das companhias comerciais e industriais.
Embora uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia frasear pouco nacionalista do Sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como pelo encômios com que o projeto foi afagado pela imprensa pseudocristã, que as "associações secretas" que ele verdadeiramente visa, são aquelas que envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o segredo especial a esta inerente.
Ora no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de Portugal, desaparecida a Carbonária - formada para fins transitórios, que se realizaram - , não existem , suponho, à parte uma outra possível Loja martinista ou semelhante mais do que duas associações secretas "dessa espécie". Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organização que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus, exatamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia.
Dos chamados jesuítas não tratarei , e por três motivos dos quais calarei o primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que eles corram risco de, aprovado que fosse o projeto, lhes serem aplicadas as suas sanções; e que não creio, por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha pretendido que tal aplicação se fizesse. Presumo pois que o projeto de lei do urgente deputado se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçônica. Como tal o examinarei.
Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos antimaçons, o autor deste projeto é totalmente desconhecedor do assunto Maçonaria. O que sabe dele é até porventura, pior que nada, pois naturalmente, terá nutrido o seu antimaçonismo da leitura da imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas. Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente com os livros de Findel, Kloss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio na leitura atenta da Ars Quatuor Coronatorum ou das suas publicações da Grande Loja de Iowa. Duvido , até, que o Sr. José Cabral tenha grande conhecimento da literatura antimaçônica - Barruel ou Robison, ou Eckert - tão admirável, aliás, do ponto de vista humorísticos. Nem terá tido noção, sequer de ouvido o artigo célebre do Padre Hermann Gruber na Catholic Encyclopoedia, artigo citado com elogio em livros maçônicos, e em que o doutor jesuíta por pouco não defende a Maçonaria.
Ora se o Sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins e organização da Ordem Maçônica, suponho que em igual condição estejem muitos dos outros membros de Assembléia Nacional, com diferença de que não se propuseram legislar sobre matéria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado apresentante, nem os seus colegas de assembléia, estarão, talvez em estado de medir claramente as conseqüências nacionais internas e sobretudo externas, que adviram da aprovação do projeto. Como conheço o assunto suficientemente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas conseqüências , vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao Sr. José Cabral e à Assembléia Legislativa de que é ornamento.
Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante. Não sou porém antimaçon, pois o que sei do assunto que me leva a ter uma idéia absolutamente favorável da Ordem Maçônica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria - parte que nada tem de político ou social - , fui necessariamente levado a estudar também esse assunto - assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e devidamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.
Se falo de mim, e deste modo, é para que o Sr. José Cabral e os colegas legisladores, saibam perfeitamente quem lhes está falando, e que o que vão ler, se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que o que vou dizer exija profundos conhecimentos maçônicos : é matéria puramente de superfície, da vida externa de Ordem.
Exige porém conhecimentos, e não ignorâncias, fantasias ou mentiras.
Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o Sr. José Cabral supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou, plena propriedade, uma Ordem iniciática. O Sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença . Pois o mal é esse - não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe em todo o caso, uma espécie de meia luz, qualquer coisa como a "treva visível" de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe o que é essa diferença por o que em linguagem maçônica se chama "termos de substituição".
A Ordem Maçônica é secreta por uma razão indireta e derivada - a mesma razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em que o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento - toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império - precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são blindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez legítima, daquela maçonaria remota.
Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro diretamente no que verdadeiramente interessa - as conseqüências que adviriam, para o país, da aprovação do projeto de lei do Sr. José Cabral. Tratarei primeiro das conseqüências internas.
A primeira conseqüência seria esta - coisa nenhuma. Se o Sr. José Cabral cuida que ele, ou a Assembléia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.
De resto, têm os Srs. deputados a prova prática em que o tem sucedido noutros países, onde se tem pretendido suprimir as Obediências maçônicas. Pondo de parte a Rússia - onde nem eu nem os Srs. deputados sabem o que verdadeiramente se passa, e onde, aliás, quase não havia Maçonaria - poderemos considerar os casos da Itália, da Espanha e da Alemanha.
Mussolini procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente da Itália mais ou menos nos termos pagãos do projeto do Sr. José Cabral. Não sei se perseguiu muita gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde. Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera: se tem em que esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vazadas dum metal que proceda da Alquimia.
Primo da Rivera, procedeu mais brandamente, conforme a sua índole fidalga, contra a Maçonaria Espanhola. Também sei ao certo qual foi o resultado - o grande desenvolvimento, numérico como político, da Maçonaria em Espanha. Não sei se alguns fenômenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia, teriam qualquer relação com esse fato.
Hitler, depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras Grandes Lojas - as que o não tinham apoiado nem eram cristãs - e, por intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas disseram que sim - aos Goerings diz-se sempre que sim - e continuaram a existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começaram a surgir cisões e outras dificuldades adentro do partido nazi. A história, como o Sr. José Cabral deve saber, tem muitas destas coincidências.
Como tenho estado a apresentar razões e fatos até certo ponto desanimadores para o Sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo, positivo, que adviria da aprovação do seu projeto. Resultaria dele - alegre-se o dominicano! - um grande número de perseguições a oficiais do exército e da armada ( exceto em Cascais ) e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem. Resultaria, portanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível - e isto é grave - que se encontrassem pessoas devotas de Santa Teresinha do Menino Jesus, personagem que ocupa, na atual mitologia portuguesa, um lugar um pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo , no estilo inesperado do roulement que não rola, o problema do desemprego - para aqueles atuais desempregados, bem entendido, que têm por Grão-Mestre Adjunto o Sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho.
Seriam essas as conseqüências internas da aprovação do projeto: dois zeros - um para o efeito antimaçônico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam essas as conseqüências internas. Vou tratar agora das conseqüências externas, isto é, das conseqüências que adviriam da aprovação do projeto para a vida e o crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado, não só é possível, mas quase certo, creio que não ocorreu ao Sr. José Cabral. Presto homenagem - e a sério - ao seu patriotismo, embora lamente que seja um patriotismo tão analfabeto.
Existem hoje em atividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas Obediências independentes do Império Britânico. Assim, cinco-sextos dos maçons hoje em atividade são maçons de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida, acha-se repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França.
As Obediências maçônicas são potências autônomas e independentes, pois não há governo central da Maçonaria, que é por isso menos "internacional" que a Igreja Romana.
Há Obediências maçônicas que poucas relações têm entre si: há até Obediências que estão suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não reatou, com o Grande Oriente de França. A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergências - cuja natureza não sei mas presumo - quanto à maneira de desenvolver a Maçonaria na China.
Assim a Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes - polí-ticos, sociais e até rituais - de país para país, e até, dentro do mesmo país, de Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três Obediências independentes - o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França ( prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33 ) e a loja Regular, Nacional e Independente para a França e suas Colônias. O Grande Oriente é acentuadamente, radical e anti-religioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anticlerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande Oriente de França tem uma grande influência política, mas exceto através dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se preocupa com política, mas a sua influência social é enorme.
Conquanto, porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo dos Graus Simbólicos ( nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está, já para quem saiba ver ou sentir, a Maçonaria inteira ), é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por Obediências diferentes. Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos claras; quem tiver as chaves herméticas em qualquer forma de um ritual encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.
Resulta desta comunidade de espírito profundo, deste íntimo e se-creto laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, ( que ) uma Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhuma relações com outra, não vê todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os maçons da Grande Loja de Inglaterra não têm, como se disse, relações com os Grande Oriente de França. Quando, porém recentemente surgiu em França, a propósito dos casos Stavisk e Prince, uma campanha antimaçônica, de origem aliás ultra-suspeita, a vaga simpática, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos conservadores que atacavam o Governo Francês, desapareceram imediatamente. O Times, conservador mas acentuadamente maçônico, relatou as manifestações contra o Governo Francês com uma antipatia que roçou pela deturpação de fatos. E há muitos casos semelhantes, como o de escritor maçônico inglês, que em seus livros constantemente ataca o Grande Oriente de França, mudar completamente de atitude ao responder a uma escritora inglesa antimaçônica, que afinal dissera pouco mais ou menos que ele havia sempre dito.
Nisto tudo, que serviu de exemplo, trata-se de coisas de pouca monta, simples campanha de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e individuais da parte dos maçons que as tomaram.
Quando porém se trate de fatos maçonicamente graves, como seja a tentativa por um governo, de suprimir ou perseguir uma Obediência maçônica, já a ação dos maçons não é tão individual e isolada, nem se resume a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações, de origem, aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o Governo de Primo de Rivera e que se encontraram, e ainda encontram, os Governos da Itália e da Alemanha.
Esses, porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo modo podem contrabandear aquelas oposições. Vem mais a propósito citar o caso de um país que não é grande nem influente na política européia em geral. Refiro-me á Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo americano.
Aqui há anos, pouco depois da guerra, o Governo Húngaro decretou a supressão da Maçonaria no seu território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados Unidos. Estava o empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final de que não seria concedido se não restabelecessem "certas instituições legítimas". O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado a entrar em transações com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a reabertura das Lojas com a condição ( que parece do Sr. José Cabral ) de que nelas pudessem assistir profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre recusou. O Governo manteve portanto a "suspensão" das Lojas... e o empréstimo não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que não faz propriamente política nem mantém relações muito intensas com as Obediências européias, á exceção das britânicas. Tratava-se, porém, de uma grave injúria à Maçonaria, e o resultado foi o que se vê.
Não venha o Sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimos do estrangeiro . Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo, de colônias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outra coisas, incluindo o não incorrer na hostilidade ativa dos cinco mil e tal milhões de maçons que, por apolíticos, ainda nos não têm hostilizado.
Creio que disse o suficiente para que o Sr. José Cabral e os outros Srs. deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o alcance da aprovação deste projeto na vida e no crédito de Portugal. Antes de acabar, porém, quero dar-lhe uma pequena amostra da espécie de gente em cuja antipatia ativa incorreríamos.
Tomarei por exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela importância que para nós têm as nossas relações com aquele país, mas também porque qualquer ação dessa Grande Loja - a Loja-Mãe do Universo, com cerca de 450.000 maçons em atividade - arrasta consigo todos os maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes. Do resto da Maçonaria não é preciso falar.
São maçons, sob a obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei - o Príncipe de Gales, Grão-Mestre Provincial de Surrey, o Duque de York, Grão-Mestre Provincial de Middlesex, e o Duque de Kent, antigo Primeiro Grande Vigilante. É Maçom o genro do Rei, Conde de Harwood, Grão-Mestre Provincial de West Yorkshire.
São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo os da antiga linhagem. São maçons, em grande número, os prelados e sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto do mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja de Roma. Não prossigo, porque já basta... Lembro todavia que os três grandes jornais conservadores ingleses - o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph, são ao mesmo tempo maçônicos...
Acabei. Convém, porém não acabar ainda. Provei neste artigo que o projeto de lei do Sr. José Cabral, além do produto da mais completa ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro, inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um maléfico para o país na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que considerar, se a Maçonaria mereceu o mau conceito em que evidentemente a tem o Sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe raciocinar, pode alguém supor que me esquivei a esse ponto. Vou por isso tratar dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor.
A Maçonaria compõe-se de três elementos; o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano - isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage quanto a atitude social, diferentemente.
Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçônico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria - como aliás, qualquer instituição humana, secreta ou não - apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa.
Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só idéia - a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina maçônica" são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos eles tentando converter em doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçônico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.
O segundo erro dos antimaçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afetam a Maçonaria como afetam toda a gente. A sua ação social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência , onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias - as que provocaram a formação dessas Obediências distintas , pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue de aqui que nenhum ato político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.
Resulta de tudo isto que em todas as campanhas antimaçônicas - baseadas nesta dupla confusão de particular com o geral e do ocasional com o permanente - estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério - o de avaliar uma instituição pelos seus atos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais - que haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma definida de em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores ( provenientes de um uso profano do tempo ) ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente a Igreja inteira.
Sejamos, ao menos justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a critério, em contrapartida, os benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito - quando expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa - pelo maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellinton e Blucher eram ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados - a Entende Cordiale, obra do maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna - o Fausto, do maçom Goethe.
Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a antimaçonaria àqueles antimaçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.
Deixe isso tudo, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem porque será 13 de Fevereiro - o aniversário daquela lei de João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.
Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1.935.
FERNANDO PESSOA
A Vaidade
Meus Irmãos, este pequeno Trabalho serve apenas de alerta, e é um Trabalho dirigido para Loja base, nas Lojas filosóficas o entendimento é diferenciado e o comportamento também. Mas, considerando que todos os Irmãos pertencem a uma Loja-base e atendendo as determinações do Presidente desta Loja Capitular, vimos expor nosso ponto de vista sobre o tema VAIDADE. Antes, porém queremos pedir compreensão pela rudeza de como iremos tratar.VAIDADE, palavra pequena e de fácil pronunciamento, de tonalidade suave aos ouvidos, porém, encerram em muitas ocasiões, situações gravíssimas no comportamento do ser humano, com conseqüências desastrosas.A vaidade, literalmente falando, é a qualidade do que é vão, vanglória, ostentação, presunção malformada de si, futilidade, e etc. Dessas qualidades a vanglória é perniciosa, pois objetiva o indivíduo jactancioso, ou seja, presunçoso, arrogante e frívolo.A presunção malfundada de si traz em seu seio situações embaraçosas, notadamente na Maçonaria, visto que aqui todos se tratam por Irmãos e presume-se que a verdade deve imperar sempre. Os detentores dos altos Graus filosóficos sabem mais que ninguém a se portarem como tal. Essa má fundamentação sobre si levanta claramente suspeitas sobre a idoneidade daquilo falado.A tão propalada vaidade feminina não traz conseqüências pois se atém tão-somente na área de estética. A masculina quando não se atém às futilidades torna-se algo de preocupação, encerra-se muitas vezes em disputas desnecessárias, gerando graves problemas de ordem interna, principalmente quando essa vaidade inclui fator poder. O fator poder é inerente ao ser humano, na Maçonaria no desbastar da Pedra Bruta, ou seja, no seu próprio burilamento cada um recebe a incumbência de burilar a si próprio e aos que estão a sua volta.Arvorar-se na condição do dever cumprido, de ser possuidor de títulos ou de possuir extensa bagagem maçônica, não contribui em nada para os destinos da Ordem. Maçonaria se faz no dia-a-dia, na conquista permanente de novos adeptos e na tentativa da melhoria constante da espécie humana. A busca incessante e permanente da verdade faz da Sublime Instituição, organização sem similar.A permanência da Maçonaria como instituição respeitável como é, deve necessariamente contar com a renúncia das possíveis vaidades de seus membros para o bem comum.Mas, vemos com freqüência Irmãos desentendidos ou que se fazem de desentendidos, querendo manter a ferro e fogo o seu círculo de poder. Apesar da inerência do poder ao ser humano, o Maçom pelos ensinamentos recebidos não pode a isso se ater.A perpetuação de uma instituição passa, com absoluta certeza, pelo grau de compreensão de seus membros e na renovação sistemática de suas lideranças. Cabe a cada um de seus membros renunciar às vaidades e presunções infundadas para o bem.A título de exemplo, tem Irmãos que gostam de apologizar-se, em descumprir a legislação em vigor, criando com esses atos bolsões de intransigências, que mais tarde derivam-se na mais pura vaidade e arrogância de ser um descumpridor, notadamente, de um poder que não tem coercitividade, que afinal é o caso da Maçonaria.Para vivermos em Igualdade, sem qualquer Grau de subordinação, é muito difícil; porém, dentro da Maçonaria é necessário.Não basta respeitar ao Irmão como homem, deve respeitar como Maçom. Não importa qual o Grau ou Rito que freqüente, importa sim, o respeito pelo ato da Iniciação e pela instituição a que o Maçom pertence.Esta diversidade que o Maçom possui, deve ela crescer sempre em benefício da ordem, e não transformar-se em um poço de orgulho, egoísmo e vaidade.Ter vaidade de ser Maçom é muito bom e proveitoso, mas ser um Maçom vaidoso e refém do poder, com absoluta certeza, não trará qualquer benefício à Ordem e aos Irmãos.O tripé de sustentação da Maçonaria: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não deve ser distorcido de sua real finalidade. Ao viciar qualquer ensinamento ou distorcê-lo é um perjúrio, os Irmãos devem ter consciência disso.As reuniões costumeiras e obrigatórias deveriam servir como bálsamo às nossas dificuldades e angústias do dia-a-dia. Infelizmente não é isso que amiúde presenciamos, a praxe é uma guerra surda no sentido de manter posições, ou seja, o "statu quo ante", isso é incompatível com o princípio da Sublime Instituição.Entre um homem simplesmente vestido de Avental e um Maçom, tem uma diferença significativa.O valor monetário que cada um possui, não deveria servir de nível para o empreendimento das ações internas. Cada expressão monetária entregue para a guarda e aplicação de cada Irmão, feita pelo G\ A\ D\ U\, deve ser entendida como encargo e não como alavanca do bem ou do mal. Cada centavo de real confiado a cada um, vai ser exigido a respectiva prestação de contas. A parábola dos talentos vem a isso confirmar. Ninguém é dono de nada, apenas o seu guardião, os Irmãos devem isso se lembrar, o nivelamento pelo valor monetário disponível por cada um, não serve para a caracterização do reconhecimento e vinculação maçônica. Cada Irmão deve ser entendido e aceito independentemente, o que vale e significa muito para a Maçonaria são os fatores intrínsecos, isto é, os fatores internos da Ordem, a sua irradiação de valores humanos, hauridos por seus membros em Loja.A Maçonaria é uma escola de humanismo e disso ninguém pode duvidar. Tanto no estudo da filosofia, da filologia e no campo social, a Maçonaria incute aos seus adeptos essa capacidade de modificação no comportamento e na visão geral da sociedade, notadamente, nas condutas de moral e ética.Portanto, dentro da ordem, não há espaço para as vaidades pessoais, devemos sim, preservá-la e mantê-la fora dessas situações tão comprometedoras de seu futuro. Não temos o direito de atentar contra seus sublimes princípios.Meus Irmãos reflitam nossas atitudes.
Ir\ Nelson Camargo de Mello
Ir\ Nelson Camargo de Mello
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