1 - O Templo
Até ao advento do cristianismo, a construção de templos aos deuses no mundo greco-romano obedecia a cânones arquitecturais precisos, que só vieram a ser expostos por escrito por Vitrúvio no século I a.C. na sua obra monumental “De Architectura”. Deste extenso tratado de Vitrúvio, expomos em seguida os quatro primeiros artigos do capítulo terceiro, que expõem sucintamente esses cânones para a construção de templos (1):
«A planta dos Templos depende da Simetria, cujas regras devem ser cuidadosamente observadas pelos Arquitectos. A Simetria nasce da proporção, que os gregos chamam ἀναλογία. A Proporção é a devida regulação das dimensões das diferentes partes, entre si e com o conjunto; da harmonia desta regulação depende a Simetria. Assim, de nenhum edifício se poderá dizer que foi bem desenhado, se não atendermos à sua simetria e proporções. Em verdade, elas são necessárias para a beleza do edifício, assim como para uma bem proporcionada figura humana» (Capítulo III, 1).
«O que a natureza estabeleceu é que, na cara, desde o queixo até o alto da testa, ou das raízes do cabelo, correspondem a uma décima parte da altura do corpo todo. Desde o queixo para a coroa da cabeça é uma oitava parte de toda a altura e, a partir da nuca do pescoço à coroa da cabeça, o mesmo. Desde a parte superior do peito às raízes do cabelo um sexto; à coroa da cabeça, um quarto. A terça parte da altura da face é igual à distância compreendida à que medeia entre o queixo e a parte inferior das narinas, outro terço até ao meio das sobrancelhas; e daqui às raízes do cabelo, onde termina a testa, o terceira parte restante. O comprimento do pé é uma sexta parte da altura do corpo. O antebraço, uma quarta parte. A largura do peito uma quarta parte. Da mesma forma os seus membros têm outras devidas proporções, em respeito às quais, os antigos Pintores e escultores granjearam tanta reputação» (Capítulo III, 2).
«Assim, as partes dos Templos devem corresponder entre si, e com o todo. O umbigo é, naturalmente, colocado no centro do corpo humano e, no caso de um homem deitado com o rosto para cima, e as mãos e os pés estendidos, e tendo o seu umbigo como centro, um círculo será descrito, que tocará os seus dedos das mãos e dos pés. Não é só por um círculo que o corpo humano é circunscrito, como pode ser visto se o figurarmos dentro de um quadrado. Medindo desde os pés à coroa da cabeça e, em seguida, à largura dos braços bem estendidos, constatamos que estas medidas são iguais às anteriores; de modo que duas linhas com ângulos rectos entre si, encerrando a figura, formarão um quadrado» (Capítulo III, 3).
«Se a Natureza constituiu o corpo humano de forma que os diferentes membros do mesmo são medidas do conjunto, assim, os antigos, com grande propriedade, determinaram o mesmo na perfeição das suas obras, cada parte deve ser uma parte alíquota do todo; e desde que o estabeleceram, tem vindo a ser observado em todas as suas obras, e de forma mais rigorosa, nos templos dos deuses, onde as suas falhas, tal como as suas belezas, permanecerão até ao fim dos tempos» (Capítulo III, 4).
O ideal greco-romano para a construção de templos cumpre assim um denso esoterismo: o homem é a medida de todas as coisas (Protágoras), e as suas proporções geométricas certificam que o Homem Individual (Microcosmo) presente na arquitectura sagrada é uma projecção do Homem Cósmico (Macrocosmo), divino e perfeito. O templo, tendo o Homem como modelo, enfatizava a sua função de ponte entre o indivíduo e as potências cósmicas.
A forma rectangular dos templos gregos e romanos, representava assim o corpo do homem e, por analogia, os céus. O rectângulo é uma extensão geometricamente proporcional do quadrado (2), e o quadrado ou quaternário, a expressão mais pura do espaço e do tempo: quatro regiões, Idades do homem, Eras do Mundo, estações do ano, fases da lua, etc.
O Homo Quadratus encarnado na arquitectura sagrada, é um símbolo pleno de significado. O seu centro assinala o ponto axial do mundo (o umbigo), uma cruz desenhada no interior do quadrado, e a divisão dos quatro quadrados resultantes em oito triângulos, resultam no seccionamento do quadrado em oito linhas que divergem do seu centro, e que apontam para os pontos cardeais e para os quatro cantos do mundo – divisão óctupla do espaço sagrado.
Assinalemos que o templo em forma de quadrilátero e a valorização religiosa das formas e volumes geométricos, não é uma criação dos gregos, mas que estes prolongam uma tradição milenar perpetuada nas margens do Nilo, onde podem ser encontradas as raízes do orfismo, e onde Pitágoras e Platão foram instruídos por sacerdotes egípcios.
Para a escola de Pitágoras, o quaternário era a origem da natureza divina e a raiz da tétractis (1+2+3+4), de cuja soma resultava o 10, a Década, o Número da Perfeição, e unindo com um traço a cabeça e os membros do Homem de Vitrúvio, obtém-se o Pentagrama, que era para a escola de Pitágoras, o símbolo do homem enquanto microcosmo, síntese do homem e do cosmos (número nupcial, matrimónio do número dois, masculino, e do número três, púbico e feminino). A geometria religiosa dos pitagóricos escalonava assim os números da tétractis: o um era a origem, a fonte da divindade e de todos os números; dois, o desdobramento do um, fonte da dualidade criadora; três, o universo vertical, céu, terra e inferno; quatro a justiça, a estabilidade; cinco o número nupcial; dez a perfeição absoluta. Ou, numa perspectiva espacial, um é o ponto (o ponto axial, do círculo ou do quadrado), dois, a linha, três a superfície, quatro, o volume (3). Todos estes números, mais o seis, o Número da Inteligência, repetem-se nas proporções acima transcritas da tratadística de Vitrúvio, e o seu Homem inscrito num quadrado (homo ad quadratum) interior a um círculo (homo ad circulum), não deixa de evocar a cosmologia pitagórica (4).
Continuemos com Vitrúvio:
«Os antigos consideravam o dez, um número perfeito, porque os dedos são dez em número, e o palmo deriva dele, e do palmo deriva o pé. Platão, atendendo a isso, chamou ao dez, um número perfeito; a Natureza formou as mãos com dez dedos, e também porque o dez é composto por unidades chamadas μονάδες em Grego» (III, 1).
2 – A Cidade Ideal
Para Vitrúvio, a planificação de uma cidade requeria tantos cuidados como a construção de um templo, e dedica grande parte da sua dissertação à disposição da cidade em função dos oito ventos.
«Com uma laje de mármore cria-se um nível fixo no espaço encerrado pelas muralhas, ou faz-se com que o terreno seja aplainado e nivelado de modo que a laje de mármore não seja necessária. No centro deste terreno plano, com o propósito de marcar correctamente a sombra, deve ser erigido um gnómon metálico. Os Gregos chamam a este gnómon cσκιαθήρας. Por volta da quinta hora da manhã, deve ser determinada a extremidade da sombra projectada pelo gnómon, e marcada com um ponto. Do ponto central do terreno, onde o gnómon está fixo ao solo, como um centro, descrever um círculo a partir do ponto assinalado pela extremidade da sombra. Depois do Sol ter passado o meridiano, observar a sombra que o gnómon continua a produzir até ao momento em que a sua extremidade toque novamente no círculo já traçado (5).
«A partir dos dois pontos obtidos na circunferência do círculo, descrever dois arcos interseccionantes entre si, e através da sua intersecção e do círculo inicialmente descrito, traçar uma linha até à sua extremidade – e obtém-se o diâmetro que deve separar os quartos do norte e do sul. A décima sexta parte da circunferência do círculo completo será medida para a direita e para a esquerda dos pontos norte e sul, e desenhadas linhas dos pontos obtidos para o centro do círculo, temos uma oitava parte da circunferência para a região norte e outra oitava parte para a região do sul. Divide-se o que resta da circunferência em cada lado em três partes iguais, e obtemos a divisão das regiões dos oito ventos, então projectar as direcções das ruas em função das linhas que separam as diferentes regiões dos ventos» (Capítulo I, 6, 7).
Vitrúvio descreve a planificação de uma cidade como era tradição no mundo antigo, mas acrescenta-lhe uma dimensão teórica, ideal, não cumprida até então: a cidade deveria não só ser orientada nas oito direcções (pontos cardeais e cantos do mundo), mas ter além disso, a forma de um octógono, a sua forma perfeita, com cada uma das faces voltada para um dos oito ventos dos geógrafos gregos e latinos: Setêntrio (norte), Áquilo, (nordeste), Solanus (Este), Eurus (sudeste), Auster (sul), Africus (sudoeste), Favonius (Oeste) e Corus (Noroeste).
O centro da cidade de Atenas, o seu umbigo, era uma torre com a forma octogonal, a torre dos Ventos de Andronicus Cirrestes, profusamente descrita por Vitrúvio, com faces no término dos oito raios do compasso, cada uma delas decorada com uma alegoria do vento que enfrentava (7).
Esta insistência de Vitrúvio nos oito ventos, dissimula um sentido esotérico subjacente.
Tudo começa com a “escolha” de um centro (o umbigo do microcosmo), muitas vezes, decerto, com rituais divinatórios para auscultar a vontade dos deuses ou perpetuando um lugar sagrado pré-existente. Nesse centro ergue-se o gnómon, que é a unidade sagrada, o ponto de irrupção de divino, eixo que unirá os três mundos na vertical.
A parir do gnómon traça-se o círculo, que delimita a fronteira do espaço cósmico, e desse círculo solar se obterá, com dois círculos interseccionantes, os quatro ângulos do quadrado interno que pode ser esquartelado pela cruz que aponta os pontos cardeais. Círculo, quadrado, cruz, que produzem o octógono, expressão da união da terra (o Quadrado) e do Céu (o círculo). Á divisão óctupla do espaço podemos acrescentar a divisão em oito do dia e do ano que eram praticados na Europa e Mediterrâneo e que persistiu na roda celta das oito festividades anuais. Para os pitagóricos, o oito seria considerado o Número da Igualdade, porque colocava no mesmo plano o mundo terrestre e o mundo celeste, os deuses e os homens (8).
Encontrei um texto de Réne Guenon, no qual ele reforça a ideia de que na arquitectura religiosa, ao quadrado corresponderia o edifício quadrangular em si, enquanto a esfera presidia a construção da abóbada do templo. Ainda que seja um anacronismo falar de abóbadas para o mundo grego, a sua explanação sobre o esoterismo do octógono merece ser seguida:
«As formas quadradas ou cúbicas referem-se à terra, e as formas circulares ou esféricas ao céu; o significado destas duas partes resulta imediatamente disto, e acrescentemos que a terra e o céu não designam aí, apenas, os dois pólos entre os quais se produz toda a manifestação, como ocorre particularmente com a Grande Tríade extremo-oriental, mas que correspondem igualmente, como no Tribhúvana hindú, aos aspectos dessa mesma manifestação que estão mais próximos, respectivamente, dos ditos pólos e que, por essa razão, se designam por mundo terrestre e mundo celeste. Há um ponto sobre o qual tivemos oportunidade de insistir anteriormente, mas que merece ser tomado em consideração: enquanto o edifício representa a realização de um "modelo cósmico", o conjunto da sua estrutura, se a reduzirmos exclusivamente a essas duas partes, seria incompleto no sentido de que, na sobreposição dos "três mundos", faltaria um elemento correspondente ao "mundo intermédio". De facto, esse elemento existe também, pois o domo ou abóbada não pode assentar directamente sobre a base quadrada, e para permitir a passagem de uma forma à outra é necessária uma forma de transição que seja, de certo modo, intermédia entre o quadrado e o círculo, forma que é, geralmente, a do octógono.
«(...) Na construção, a forma do octógono pode realizar-se, naturalmente, de maneiras diferentes, e especialmente, por meio de oito pilares que suportam a abóbada; encontramos um exemplo na China, no caso do Ming-Tang (...), cujo "tecto redondo está suportado por oito colunas que repousam sobre uma base quadrada, com a terra, pois, para realizar esta quadratura do círculo, que vai da unidade celeste da abóbada ao quadrado dos elementos terrestres, é necessário passar pelo octógono, que se encontra em relação com o mundo intermédio das oito direcções, da oito portas e dos oito ventos" (Luc Bennoist, "Art du Monde", p. 90). O simbolismo das "oito portas", que se menciona também nesta passagem, explica-se pelo facto de que a porta é essencialmente um lugar de passagem e representa, como tal, a transição de um estado a outro, especialmente, de um estado "exterior" a outro "interior", pelo menos relativamente, porque essa relação do "exterior" e do "interior" é sempre comparável, em qualquer nível que se situe, à do mundo terrestre e o mundo celeste».
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Ŋotas:
(1) Servimo-nos da edição online da obra, em língua inglesa, do portal LacusCurtius de autores gregos e romanos
(2) ”O sistema da proporção definida que os gregos empregavam no desenho dos seus templos foi outra causa do efeito que eles produzem sobre as mentes incultas. Para eles não só a altura deveria ser igual à largura, ou comprimento duas vezes a largura - mas toda e qualquer parte devia ser proporcional a todas as partes com que ela se relacionava, em alguma razão tal como 1 para 6, 2 para 7, 3 para 8, 4 para 9, ou 5 para 10, etc. A medida que o esquema avança, esses números tornam-se consideravelmente altos. Nesse caso, eles revertem para alguma razão simples, tal como 4 para 5, 5 para 6, 6 para 7, e assim por diante” (James Ferguson, citado por Nigel Pennick, v. Fontes).
(3) Adaptado da tese “Números para Pitágoras” de Christian Quintana Pinedo.
(4) «Alexandre, no seu “A Herança dos Filósofos” diz ter achado também nos escritos pitagóricos as coisas seguintes: O princípio de todas as coisas é a unidade, e desta procede a dualidade, que é indefinida e depende, como matéria, da unidade que a origina. Assim, a numeração provém da unidade e da dualidade indefinida. Dos números provém os pontos, destes as linhas; das linhas, as figuras planas; e das figuras planas, os sólidos; e destes os corpos sólidos, os quais se compõem de quatro elementos, fogo, água, terra e ar, estes quatro elementos combinam-se entre si e transformam-se completamente uns nos outros, e delas se engendra o universo animado, inteligente, esférico, que tem a terra como seu centro, e a terra também é esférica e habitada no seu interior. Também há antípodas, e o nosso abaixo é o seu acima» (Diógenes Laércio, “Vidas, opiniones y sentencias de los filósofos más ilustres ”, tomo II, Livro VIII – o negrito é meu)
(5) Dito doutro modo, a distância máxima da sombra do gnómon de manhã e à tarde, fornece os pontos cardeais leste e oeste.
(6) «Por isso, Deus tornou o Todo em forma esférica e circular, sendo todas as distâncias iguais, do centro à extremidade. É esta, de todas as figuras, a mais perfeita e a mais completamente semelhante a si mesma» (Platão, "Timeu", 33).
(7) Não nos parece que a torre seja uma mera Rosa dos Ventos, mas um centro, um eixo, construído e respeitado como símbolo do equilíbrio cósmico.
(8) «O octógono resulta da união entre o quadrado da terra e do quadrado do céu, simbolizando a comunicação entre ambos», escreve Paulo Alexandre Loução no quinto capítulo de "Os Templários na Formação de Portugal" (Ésquilo, 2001), capítulo que abre com uma citação de Pitágoras: «O número oito, ou a octóada, é o primeiro cubo, vale dizer, quadrado em todos os sentidos, como um dado, que precede de sua base, o dois, ou de qualquer número; assim, o homem é quadrado ou perfeito".
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